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Por que eu pedalo? A minha história com o ciclismo, por Pippo Garnero

Texto por Pippo Garnero em Strava Brasil Club
Por que eu pedalo? A minha história com o ciclismo, por Pippo Garnero
Em 02/04/2020 às 21:17

Texto por Pippo Garnero em Strava Brasil Club

Saio do banho, a toalha na cintura e a Ana Carolina, minha esposa, com uma voz assustada e com pena, me diz: meu Deus, o seu corpo está todo marcado. Ela se referia às muitas cicatrizes de queimaduras do asfalto que se sobrepõem, umas às outras, em minha pele.

Sou um ciclista profissional. Em outras palavras, há décadas trago na palavra resistência o meu emblema de vida. Nesse caminho, foram tantas as quedas e os infortúnios que não consigo sequer contá-los. Mas ser ciclista é ser um estudante da dor, na profunda observação de Scott Martin. A dor é o elemento central a esse esporte, dura e amarga como o caroço no interior de um delicioso pêssego, dizia o Martin. Sem ela, não há adversidade. Sem adversidade não há desafio. Sem o desafio, não existe progresso. E sem progresso, não há satisfação pessoal e a felicidade íntima que dela decorre.

Consigo sentir, vividamente, como se fosse hoje, os meus três principais acidentes: aquele na primeira etapa do Tour do Rio em 2016, quando então decidi completar os seus mais de mil e duzentos quilômetros, percorridos em 7 dias consecutivos, embora não conseguisse dormir à noite de tanta dor; quando quebrei a clavícula esquerda, seis costelas e deixei parte da minha pele no asfalto de Morungaba, SP, no ano passado, ao perder o controle na a 70 km/h na descida; e o pior de todos, o recente atropelamento em fevereiro deste ano que, milagrosamente, apesar de ter causado a destruição completa de minha bicicleta, deixou-me somente com um trauma no cóccix.

Esse último caso, que só agora trago a público, mereceria um texto à parte, com um título diverso – do tipo “como é possível que eu pense em continuar pedalando?”, ou então “quantas vezes conseguiremos nos levantar?” – já que representa o ato de covardia que materializa o pior pesadelo do ciclista: ser o alvo, indefeso e desprevenido, de um motorista negligente.

Seja como for, as marcas eternamente gravadas em minha epiderme atestam que não sou um homem comum. Entre vinte e cinco a trinta horas semanais estou na estrada, treinando e competindo. Percorro na bicicleta mais de trinta mil quilômetros todos os anos. Por que eu pedalo?

A primeira resposta talvez seja: porque amo o esporte e o meu espírito me empurra para que eu esteja constantemente me desafiando, na ideia obstinada de superar os meus próprios limites. Mas a verdade é que eu nunca acreditei nessa história de limites, preferindo entender que todo limite é imposto por nós mesmos e pode, portanto, ser por nós derrubado.

Posso me convencer também que pedalo porque sou bom naquilo que faço e toda pessoa tende a amar aquilo que ela faz de melhor. Às vezes me falam que se o ciclismo no Brasil tivesse o reconhecimento que possui o futebol, a Nike e a Globo estariam agora batendo às portas de minha casa, perturbando o meu sossego. Mas eu não nasci com o talento do Neymar, e como todo atleta de resistência do país, sei que o esporte não me deixará rico, pelo menos não no sentido que comumente se dá a essa palavra.

E, “o que é o dinheiro, afinal?”, já perguntava Bob Dylan, respondendo o próprio poeta que bem-sucedido é homem que se levanta pela manhã, deita-se à noite, e, entre esses dois momentos, faz o que ama.

Voltemos um pouco na história, por quase vinte e cinco anos, para recomeçarmos em julho 1996, quando o espanhol Miguel Indurain – que, após tornar-se o primeiro atleta a vencer cinco Tours de France consecutivos, buscava a inédita sexta vitória geral – finalmente mostrava o seu lado humano e sucumbia frente aos seus rivais, mais preparados, que o atacavam incessantemente na subida de Les Arcs, no coração dos alpes franceses.

Com treze anos de idade, eu a tudo assistia ao vivo e, atônito, ouvia os berros dos locutores franceses que deliravam diante daquele acontecimento histórico. Indurain não venceria outro Tour. A lenda de Navarra nunca mais seria a mesma após aquele dia quente de julho. A verdade, contudo, é que tampouco eu seria o mesmo. Aquele dia também me transformaria para sempre, pois foi ali que decidi que me tornaria ciclista.

Pedi, então, ao meu pai, que me levou a Decathlon, onde ganhei a minha primeira bicicleta de corrida: uma speed! A alegria que senti com minhas primeiras pedaladas até hoje se faz presente, e há dias em que experimento exatamente a mesma sensação de liberdade daqueles primeiros momentos. E aqui mora uma outra mágica do esporte; ele tem o poder de nos retornar à infância, tal como uma máquina do tempo, e fazer brotar em nós imagens e impressões que há muito achávamos perdidas em nosso passado.

Um mês depois de ganhar o meu mais valioso presente, confrontei meus pais certa manhã pais e afirmei que a minha vontade era mesmo permanecer na França para seguir uma carreira no ciclismo. A negativa foi enfática; eu deveria voltar à escola, no Brasil. Foi um momento decisivo, é certo. Eu poderia ter insistido, resistido, porém devo ter percebido que minhas chances de sucesso final, com treze anos de idade, realmente não existiam. Logo, cedi, e o sonho adormeceu. E assim permaneceu, dormente, por alguns anos.

Um fato interessante, entretanto, parece ter ficado claro para mim desde aquelas primeiras pedaladas: era nas subidas que eu me sentia melhor; esse seria o terreno no qual eu conseguiria me levar até onde os outros teriam dificuldades. Como Senna na chuva ou Nadal no saibro, foi na montanha que o atleta que habitava em mim encontrou seu campo de predileção. Foi um amor puro e instantâneo. E até hoje estou certo de que nenhum terreno é mais imponente, místico, e perfeito para o ciclismo como a alta montanha. Naquele momento eu já percebia claramente que John Muir tinha razão: eu não estava na montanha, mas ela sempre esteve em mim.

Mas eu não segui a carreira de um ciclista. Ao invés, formei-me em Direito, com alguns anos de estágio no Ministério Público do Estado de São Paulo, quando então me apaixonei pelos estudos e pelo ideal de poder contribuir com a Justiça. Decidi, então, que estudaria para tornar-me Magistrado ou Promotor, mas acabei migrando, a pedido do meu pai, para os negócios da família, principalmente para poder passar todos os dias ao lado dele.

Faculdade, trabalho e alguma balada, nessa ordem, eram as ocupações da semana. Mas a paixão pela bicicleta nunca esfriou e eu mal podia esperar o final de semana para ir ao interior pedalar com meus amigos Otto e Nando.

Foi então que conheci Plínio José de Souza, um dos acontecimentos que viria a definir o meu futuro no esporte. Verdadeira lenda do esporte brasileiro, especialista em longa distância, com tantos títulos que eu não conseguiria enumerá-los em um só artigo, aquele que hoje chamamos de “o véio” me entusiasmou com sua capacidade quase sobre-humana de resistência, sua natural aptidão para o sofrimento, seu desconhecimento de qualquer limite físico ou mental, e, sobretudo, sua forma sincera e descomplicada de enxergar a vida. Meu objetivo passou a ser, logo, ter uma condição física igual a do Plínio e, quem sabe, – um dia! – ser até o mais rápido entre nós dois.

Quis o destino também que eu viesse a conhecer Renato Ruiz, meu conterrâneo de Campinas e então ciclista profissional, bicampeão nacional. Foi Ruiz quem me apresentou para o meu primeiro verdadeiro preparador físico, o paranaense José Luiz Dantas. Lembro-me que fui com Dantas realizar uma avaliação física inicial, para que ele pudesse medir o meu condicionamento atual e desenhar um plano de treinamento para a temporada que se aproximava.

Após uma bateria de exames físicos, Dantas apareceu em casa com os seus resultados e um sorriso enorme no rosto, gritando: “Rapaz! O seu ramp test deu quase 6 watts por kilo no limiar! E o seu Vo2 superou os 80 mL (min-kg)!”. O entusiasmo do Zé foi tão grande que ele, de pronto, me garantiu que, se eu passasse a treinar e viver com um verdadeiro profissional, ou seja, se me dedicasse integralmente ao esporte, logo estaria disputando a vitória com os melhores do Brasil. Acredito que Dantas não soubesse, naquele exato momento, do poder que aquelas palavras carregariam sobre mim.

A ideia de finalmente ser um atleta profissional, que se encontrava em sono profundo desde a minha infância, subitamente despertou com a força de um Vesúvio em erupção, e suas lavas se consolidaram de tal modo em minha mente que tornarem-se parte inseparável do meu próprio ser! ­­­­­­­­­

Não havia mais retorno, eu passaria a dedicar minha vida ao esporte. Ponderei que não era mais um adolescente e claramente não estava ficando mais novo. Calculei, também, que daquele momento em diante teria no máximo mais quinze anos de condição física ideal para atingir o ápice de minha capacidade. Em outras palavras, era “agora ou nunca mais”, conclui.

Por outro lado, também reconheci que, por uma série de razões, eu não estava feliz na vida que levava. Precisava mudar para que aquilo não me consumisse. Além disso, a metrópole era grande demais para mim e o seu caos definitivamente não combinava com o meu esporte.

Lembrei-me, naquele momento, do famoso discurso de Steve Jobs para os formandos da Universidade da Stanford, especialmente quando diz: “toda manhã me olho no espelho e faço a seguinte pergunte: “se hoje fosse o último dia da minha vida, eu estaria fazendo aquilo que estou fazendo hoje? E se a resposta for ‘não’, eu sei que tenho que mudar algo”.

O que tinha, então, a perder com uma mudança abrupta no meu estilo de vida? Nada! E nada tendo a perder, só me restava a liberdade para perseguir os meus próprios sonhos. O futuro pertence àqueles que acreditam no que sonham.

Decidi então mergulhar de cabeça no esporte com o objetivo de me tornar o melhor ciclista que meu corpo me permitisse ser. Me profissionalizei. Nascido e crescido no campo, para ele eu voltei e, no interior, construiria a base de todo o meu treinamento esportivo.

É claro que sofri com a incompreensão e o preconceito, uma arma sempre à disposição daqueles que não ousam caminhar fora de um padrão pré-definido. Sabendo ser o preconceito filho da ignorância, não deixei que ele me detivesse, e segui adiante. O fato de vir de uma vida financeiramente cômoda para, voluntariamente, sujeitar-me aos rigores desconfortos do treinamento de alto rendimento também gerou certa resistência. Porém, foi através de meu suor – e não do meu sobrenome – que ganhei o respeito dos meus companheiros, adversários e de toda uma comunidade no esporte. E essa é uma sensação impossível de ser comprada.

O tempo, desde então, passou voando com a velocidade de uma bicicleta descendo os Alpes. É o que acontece quando os dias são preenchidos fazendo aquilo que se ama. Escolha um trabalho que você ame e estará sempre de férias, ensinava Gandhi.

Fui campeão nacional; integrei por alguns anos a Seleção Brasileira; corri as principais competições das Américas e também o evento teste para os Jogos Olímpicos do Rio/2016. Disputei um Campeonato Mundial na Elite. Ao olhar para trás, para quem, teoricamente, começou muito tarde no esporte de alto rendimento, consigo apreciar tudo o que o meu esforço produziu.

Entretanto, são os longos momentos de disciplina, foco e solidão do treinamento, a parte obsessiva do trabalho que não é vista por ninguém e que só eu conheço em profundidade, que mais me orgulha.

É verdade que as mazelas que assombram o esporte nacional me fizeram perder o ânimo por alguns anos. Fiquei chateado também de não ter sido um dos ciclistas convocados para as Olimpíadas de 2016, pois estava intimamente convencido de ser o brasileiro mais preparado para enfrentar o percurso montanhoso do Rio de Janeiro, sobretudo porque morava na cidade e conhecia cada detalhe de suas subidas.

Mas o carinho e o incentivo dos mais próximos me fez retomar o esporte com vigor redobrado. Voltei a competir como amador em 2019 e acabei vencendo o La Marmotte com apenas alguns meses de treinamento. Desde a minha adolescência sonhava em um dia completar essa prova, mas não imaginava que levantaria os braços, vitorioso no Alpe d’Huez, após ter escalado quase seis mil metros em cento e oitenta quilômetros.

Hoje sou reconhecido como um dos principais escaladores do país. Me profissionalizei novamente, com um plus de poder voltar a ser companheiro de equipe do Francisco Chamorro, um dos meus maiores mentores no esporte.

Posso dizer com toda sinceridade que a minha dedicação para com o esporte nunca diminuiu, nem sequer por um milímetro. Ao contrário, me parece que, o quanto mais velho fico, mais me disponho a trabalhar duro. Com certeza essa característica é o legado do meu pai.

Sem me enriquecer em um só centavo, o ciclismo me deu o que há de mais valioso na vida. Foi através dele que conheci minha amada esposa e tivemos a Maria Júlia, nosso tesouro. Isso, por si só, já confere sentido a todo curso da minha história, com seus erros e acertos.

O mundo no esporte também me deu amizades sinceras e duradouras. Vivi experiências únicas de companheirismo e lealdade. Aprendi que o esporte tem a capacidade única de ressaltar valores fundamentais como a ética, a palavra, e o desprendimento por tudo aquilo que não faz parte da nossa essência.

Diante de tudo isso, não sobra o menor espaço para qualquer arrependimento.

Ontem mesmo estava pedalando, sob uma forte chuva e um desconfortável frio de outono, nas serras de Morungaba – aquela mesma que me presenteou com as fraturas da clavícula e das costelas – quando me perguntei “por que eu pedalo?”.

É bem provável que não exista uma só resposta e se ela existe, nem mesmo eu a conheça. Não soube responder ontem e, agora, ao terminar esse texto, também não a encontro. Posso imaginar, com certa vaidade, que seja finalmente por vocação que eu pedale. Seja como for, uma coisa é certa, e Balzac já o afirmava: uma vocação não realizada é capaz de arrancar todas as cores das nossas vidas.

Portanto, acreditem: o seu sonho é a sua vocação. E pedalem em sua direção; olhando para trás somente para reviver todo o caminho percorrido e sorrir de gratidão e alegria.